Memórias de um poeta autófago
Estava sentado na laje; aquele era um lugar bom para pensar ou, dependendo da disposição, para não pensar. Saíram-me versos:
Que há de difícil em escrever poema?
Versos enganchados?
Temas atravessados?
Atropelo de fonemas?
Burrice crônica?
A tinta derramou?
A pena quebrou?
A mão treme, agônica?
Ou foi o mundo que afogou teus sonhos?
Roubou-te a música
Fechou-te a boca
Se assim foi teu canto corto
Digo-te amigo
Estás… morto!
Versar para mim sempre foi fácil. Não conseguia, naquele tempo, entender como algo vivo não conseguia poetar. Quando os amigos me diziam que era complicada minha ocupação, ficava confuso, questionando-me de como alguém podia achar isso. Hoje entendo tudo:
A vida é ilusão
Quanto tempo, passamos nós neste engano?
Pobres crianças,
Trancadas num quarto escuro
Os fantasmas palpando-lhe os pés
Bichos-papões aterradores
De dentes pontiagudos
E olhos escarlates
Roem-lhes a carne
Dia após dia
Sem licor ou anestesia
Sem pudor, roem-lhes a carne!
Para que trovar então?
Pra quê?
Se é a vida ilusão?
Ah, Augusto! Como me abriste os olhos! Não há motivo para o que fazemos… E por que fazemos, amigo? Por esperança, Augusto, por esperança! Nós esperamos que algo venha dar significado a este nosso trabalho inútil. Achei-me covarde, fraco. Aguardar o quê, homem? O sábio já nos avisava que não há nada de novo debaixo do sol, desde que o mundo é mundo. Bendita pneumonia que te levou! Tomei coragem de ir contigo:
Abri os olhos e disse: vou morrer!
Afinal, de quê me vale essa vida?
Vida dos calos inchados, das mãos feridas,
Da hipocrisia nossa de todo dia;
Dos sorrisos abertos, dos corações fechados,
Da louca sanidade humana.
Então, de quê me vale?
Se mentiu o poeta dizendo que só havia uma pedra no caminho –
Quem dera…
Talvez tivesse adiantado minha dinamite.
Talvez não tivessem morrido meus sonhos.
Talvez não tivesse ombros caídos.
Deixo um inferno para ir a outro,
(Que estejam errados os teólogos!)
Vou indo tranqüilo…
Lá, o ódio é ódio,
Sem as lindas máscaras de teus olhos,
Amiga vida.
Lá não vou precisar engolir o escarro de minhas palavras;
Hei de cuspi-lo todo na face dos que me odeiam!
E, se mesmo assim, me acolher o Senhor em sua morada,
Não deixarei de cuspi-lo,
Não guardarei essa mágoa.
Se for real meu desejo,
Que os vermes comam o que de orgânico houver podre,
Já que o mais pútrido não conseguem roer.
Entrego-me em teus braços, morte, amante minha;
Tira a roupa, vamos acabar logo com isso!
À vida digo aquele “não!” sentido.
Adeus semimorte!
Adeus calos!
Adeus, amores sonhados e não vividos!
Mas o que há? Meus olhos não apagaram. Ainda sou, ainda penso, ainda existo. Onde está a inexistência, que não a vejo? Não há nada aqui, só a solidão. Então, o que mudou? Já estava sozinho do outro lado. Aqui sofro mais, sem as pequenas alegrias que lá tinha; aqueles entorpecimentos diários e vagos que nos fazem esquecer a estupidez de tudo. Ah, Augusto! Por que desprezamos esta fantasia, a vida?
Não acaba
Esta vontade de viver não me escapa
Carcomendo-me o espírito de morto
Na busca estúpida de um corpo
Aquele veneno hostil que me despiu das ilusões
Por que bebi?
Não podia ter continuado com meus sorrisos, panteões?
Maldita esta sina de saber
As fantasias acabaram
A paz não existe
Vou voltar
Aguardem-me, hipócritas!
Ai, ai de mim que rejeitei a vida!
Queira-me de volta, minha querida
Sem você sofro as dores da consciência
Entrego-me à tua imbecilidade imensa!